sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Uma das descrições mais perfeitas que já li. Emocionante!

Ontem não vi lua no céu, e hoje o sol não apareceu… Uma tristeza toma conta do meu coração neste dia porque uma pessoa essencial para a minha existência não mais se encontra no mundo dos que lutam, dos que respiram, dos que vivem. Minha avó, Francisca Geni Lopes Gurgel, respirou pela última vez ontem à noite aos 87 anos. Deus mais uma vez me fez sentir sua onipotência, provando sua existência indiscutível, quando, apesar de todos os esforços intensamente dedicados por mim e vários amigos de profissão a ela, não permitiu o resultado esperado pela família, por aqueles que estavam torcendo e rezando pela sua recuperação; com incansável e persistente dedicação de toda uma equipe de cuidadores, em aproximadamente 48h de internação ela expirou… Em determinado momento da batalha, confesso que, no fundo do meu coração, e baseando-se em conhecimentos que as letras e os estudos me permitiram adquirir, antevi o pior, de modo que o fim não esperado por nós familiares era algo claro em minha razão. Como nunca me dei por vencido em nenhuma luta da vida, trabalhei para que pudéssemos, como equipe, fazer o que sempre fiz de melhor: persistir. Apesar de não ter conseguido o êxito esperado, o que mais me conforta é saber que a sua partida não se deveu à falta de assistência em nenhum momento, e absolutamente tudo o que pudemos fazer por ela naquele momento foi feito.
 
Ela se foi em um momento, e se a vida é feita de momentos, foram vários os momentos hoje que me farão agradecer todos os dias de minha vida estar aqui entre os meus neste instante, já que vivi tanto tempo longe deles, e me permitem, assim, cada vez mais reafirmar o meu projeto de retornar para perto dos meus familiares. A família é tudo o que se tem, sempre será; deve-se tudo, absolutamente tudo, a ela. Vários momentos me comoveram desde o preciso momento que ela partiu: quando estávamos vendo o seu corpo antes do velório, minha tia, Conceição, pediu que se colocassem muitas rosas, muitas mesmo, no caixão, porque minha avó sempre gostou de estar muito cheirosa; o meu pai, João Medeiros, atentou para o fato de que ela morreu sorrindo, e naquele momento o peso da morte pareceu se suavizar em todos nós. Hoje, ao lado de irmãs, pais, tios, primos, outros avós, chegamos à sua cidade natal, Janduís, e rapidamente várias imagens da infância vieram a minha memória: várias pessoas nas calçadas, sentadas, ou deitadas em redes entre as árvores das ruas perto de suas casas, e mesmo sentadas na calçada da casa de minha avó – num interior como aquele, parece que todo dia é domingo. Várias pessoas das quais eu não mais conseguia me lembrar vieram prestar seus sentimentos e me reconheceram pelo nome e por ser o filho de minha mãe, Maria do Socorro, e diziam que muito cuidaram de mim quando eu era criança e ia para aquela cidade – infelizmente não me lembrei de muitos deles porque era muito pequeno, mas agradeci todas as vezes que vieram dizer isto. Ao entrar na casa, com o caixão na sala, o meu avô, Pedro Gurgel, com mais de 90 anos, mas ainda a pessoa mais lúcida que conheço, ao receber meu pedido de bênção, a deu e disse para mim: - Geni está tão bonita! E não há como a lágrima não cair… 

Vovó estava com um belíssimo véu azul e deitada em rosas as mais belas que já vi! Vi minha prima pequena perguntar ao meu tio porque ela estava deitada em rosas, e meu tio respondeu: - Foi porque Jesus ‘chamou ela’… E percebi a inocência da criança naquele questionamento. Andando pela casa, revi quartos em que dormi e boas lembranças; ao entrar no quarto em que meu avô dorme hoje, vi vários objetos amontoados pelas paredes, muitos mesmo, que não têm o menor valor material, mas são a vida dele, coisas velhas das quais ele não se desfaz – minha mãe é assim, e eu me reconheci e me vi claramente neste momento… Meu primo, Guilherme, falou que uma vez tentaram arrumar o quarto de meu avô, retirar esses ‘cacarecos’ de lá e ele ficou uma semana doente; ele não suporta… No final da manhã, o corpo de minha avó foi levado para a igreja da cidade e lá foi feita uma celebração; a igreja estava lotada, e músicas e orações muito nos comoveram. Durante a homilia, o celebrante, que não era padre (percebi uma aliança dourada em seu dedo anular esquerdo), citou vários grandes das letras, como Fernando Pessoa e Antoine de Saint-Exupéry, e tentou explicar o que seria a morte; no fim, falou sobre o amor. A todo momento, percebia o carinho que as pessoas da cidade dedicavam à minha avó. No meio da celebração, um senhor de 70 e pouco anos passou mal e foi respirar ar puro fora da igreja; fui até ele, tentando ajudar de alguma forma na posição de médico por perto, e perguntei o que tinha havido; ele disse que tinha sido só um ’nervoso’, porque, vendo todas aquelas coisas na igreja, e minha avó, ele se lembrava de que o tempo dele iria chegar logo, e chorou… Nesta hora, como médico, não pude chorar por fora, mas o ajudei e chorei por dentro, e percebi que a experiência dos idosos transmite grande conforto e sabedoria a nós mais jovens, e a única verdade diante de nós é a morte.
 
Ao final da celebração, perguntei a meu primo como iríamos para o cemitério partindo da igreja, como iria o caixão; ele me disse que o iríamos carregando nas mãos – senti força naquelas palavras. Saímos carregando o caixão e as pessoas se ajudavam naturalmente; a cada 1 minuto carregando o caixão, uma outra pessoa vinha e lhe substituía o lugar espontaneamente. Em um determinado momento da peregrinação, lembrei ao meu pai, chorando, que tinha feito de tudo para que aquilo não acontecesse; ele me confortou e disse sábias palavras, como sempre: '- Meu filho, quando chega o momento de ir, não tem jeito. É assim que as coisas são'. Tudo terminou sob uma chuva de rosas e cravos… E ela se foi… Ao retornar para a casa de meus avós, um carro de som passeava pela cidade informando que, em virtude do falecimento da senhora Francisca Geni Lopes Gurgel, uma filha e professora de Janduís, hoje não haveria aula nas escolas da cidade… Já em casa, pedi fotos de minha avó para guardar e vi coisas preciosas, e não estranhei a grande semelhança existente entre minha mãe e minha avó quando jovem; reforçou-se em mim que somos, realmente, como nossos pais.
 
Já perto do fim de sua vida, vovó não mais se lembrava de mim, não mais sabia que eu era seu neto, mas eu jamais esquecerei dela, devendo a ela a minha existência… Se não fosse ela, eu não seria… E hoje o sol não se levantou e não vejo lua no céu, mas uma estrela que forte brilha lá em cima não é Sirius, é vovó. Hoje, ”como uma ponte sobre águas turbulentas, ela descansou”… E para sempre… Adeus, vovó!

João Paulo Gurgel de Medeiros

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