“A paixão é emoção gratuita. Não
há causas que a expliquem. Mas, quando acontece, ela age como uma artista: da
paixão surgem cenas de beleza. Os amantes se imaginam andando de mãos dadas por
campos floridos; abraçados numa rede; silenciosos, diante do fogo da lareira;
contemplando o rosto de um nenezinho adormecido...Paisagens da paixão.
Minha paixão pela educação tem
também suas paisagens. E as paisagens que me comovem, agora que já sou velho,
não são as mesmas que me apareciam quando eu era jovem.
Acho que a velhice aparece no
momento em que começamos a procurar os herdeiros. Ao meu redor está uma
infinidade de objetos que me pertencem. Alguns me são totalmente indiferentes,
do ponto de vista afetivo. Como, por exemplo, este computador em que estou escrevendo
esse texto, igual a milhares de outros computadores. Não me preocupo com o que
vão fazer com ele depois de minha morte. E isso é verdade de todos os objetos
definidos pela utilidade. Objetos definidos pela utilidade só valem enquanto
forem úteis. Quando deixam de ser úteis são trocados por outros mais novos, ou
jogados fora.
O problema está nas coisas que
são possuídas por serem amadas, s despeito de sua utilidade. Manoel de Barros,
no Livro sobre nada, diz: “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia, de formiga e musgo, elas podem um dia milagrar de
flores. Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. Senhor, eu
tenho orgulho do imprestável.”
Entre minhas coisas imprestáveis
estão pedras que catei em lugares que só eu sei, bolas de gude, piões, troncos
de madeira apodrecidos catados no pasto, quadros, livros de arte, livros de
literatura, de mística, de poesia, livros que escrevi, CDs, presentes de amigos
que, não tendo uma utilidade, são guardados por neles morarem memórias. É
preciso que os herdeiros sejam pessoas que os amem e cuidem deles, porque eles
são partes de mim mesmo.
Mas, de todos os objetos, os
mais difíceis e sutis são as idéias. Bom seria que a gente pudesse fazer com as
idéias o mesmo que os testamentos fazem com os objetos: são dados e pronto.
Na minha cabeça moram idéias de
dois tipos.
Primeiro, as idéias que não são
de ninguém e são de todos, os saberes da ciência, o teorema de Pitágoras, a
regra de três, e=mc2, força = massa x aceleração, as informações sobre a
história, sobre a filosofia, sobre a geografia, sobre a teologia – tudo isso
está gravado e organizado nos arquivos de minha memória de saberes. Congeladas.
Paralisadas. Aparecerão quando eu precisar delas e as chamar.
Não tenho nenhum afeto especial
por tais informações. Eu as uso como uso martelos e barbantes: pela utilidade.
Estão na minha cabeça, mas podem ser encontradas em livros. Se a memória me
falhar, vou a um livro e lá estão elas à minha espera. Os educadores deveriam
ter isso como moto: mais importante que saber é saber onde encontrar. Se eles
soubessem disso, o ensino e os vestibulares seriam totalmente diferentes.
Essas idéias não são minhas. São
propriedade universal. Apenas as uso. Assim, seu destino depois de minha morte
já está resolvido. Elas nem perceberão que morri.
Mas há outras idéias que são
parte de mim. Nietzsche dizia amar somente os livros que haviam sido escritos
com sangue. Livros escritos com sangue são aqueles em que as palavras são apenas
a carne de idéias nascidas do corpo. A diferença entre os livros escritos com
sangue e os outros escritos com conceitos é fácil de ser percebida. Os livros
escritos com sangue mexem com o corpo e a alma. Os outros mexem só com a
cabeça. O corpo fica do jeito como sempre foi.
Alberto Caeiro tem um lindo
poema intitulado O guardador de rebanhos. Diz assim:
Eu nunca
guardei rebanhos,
Mas é
como se os guardasse.Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar...
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo
versos num papel que está no meu pensamento,...
olhando
para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, ou
olhando
para as minhas idéias e vendo o meu rebanho...
Minhas idéias são os
carneirinhos que apascento. Minhas idéias são meu rebanho. Amo o meu rebanho.
Fico aflito pensando que, quando eu morrer, minhas idéias ficarão sem pastor.
Aí me ponho a procurar aqueles que irão apascentar minhas idéias.
Minhas idéias-carneirinho são
meus sonhos. Elas nada têm a ver com a ciência. Porque as idéias da ciências
são idéias universais, de todos, quer gostemos delas ou não. A verdade
científica está fora do círculo do gostar. Minhas idéias não são universais.
São minhas, e dos poucos que gostarem delas.
Meus sonhos são minhas
esperanças. Os sonhos são a imagem visível das esperanças. Elas não
correspondem a nada que exista. Não têm, portanto, existência no mundo da
ciência. Mas os sonhos é que nos separam dos animais. Nossas corpos fazem amor
com o que não existe, ficam grávidos e parem.
Existe um mundo que acontece
pelo desenrolar lógico da história, em toda a sua crueza e insensibilidade.
Mas há um mundo igualmente
concreto que nasce dos sonhos: a “Pietá”, de Michelangelo, o “Beijo” de Rodin,
as telas de Van Gogh e Monet, as músicas de Tom Jobim, os livros de Guimarães
Rosa e de Saramago, as casa, os jardins, as comidas: eles existiram primeiro
como sonho, antes de existir como fatos. Quando os sonhos assumem forma
concreta ( Hegel dava a isso o nome de ”objetivação do espírito” ), surge a
beleza.
Zaratustra dizia haver chegado o
tempo para que o homem plantasse as sementes de sua mais alta esperança.
É essa a imagem que se forma ao
redor de minha paixão pela educação: estou semeando as sementes da minha mais
alta esperança. Não busco discípulos para comunicar-lhes saberes. Os saberes
estão soltos por aí, para quem quiser. Busco discípulos para neles plantar
minhas esperanças.”
ALVES, Rubem.
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